Esse material é um conteúdo colaborativo do jornalista Luiz Cláudio Ferreira. Se você quiser enviar um material (não-comercial) para o Boatos.org, entre em contato com a gente.
Há 40 anos, moradores de Recife entraram em pânico com o rumor de que a barragem de Tapacurá rompesse e imundaria a cidade. Caso virou livro.
A cena é digna dos filmes de catástrofes. Pessoas correm desesperadas pelas ruas. Abandonam carros e ônibus, debatem-se. Gritam por um socorro, mas não sabem para quem. Enfermos são empurrados com o soro pendurado na cadeira de roda. Há quem busque prédios mais altos. Há quem pegue malas, desça pelas escadas e corra sem destino. Uns pelas avenidas, outros pelas ruas menores. Este é o cenário a partir das 10h do dia 21 de julho de 1975 no Recife. Um boato se espalhou pelo centro da cidade que a barragem de Tapacurá havia estourado. Em minutos, segundo o que imaginavam, uma onda gigante acabaria com a “Veneza Brasileira”. Há notícia que três pessoas morreram vítimas de infarto por causa do pânico. A cidade respirava o caos à luz do dia.
A dona de casa Manuela Araújo, então com 33 anos, comprava frutas e verduras no tradicional Mercado de São José, no centro da capital. Com as sacolas nas mãos, não entendeu quando começou o corre-corre. Ouviu gritos de pânico e saiu desesperado. Lembrou que os quatro filhos estavam sozinhos em casa. “Só pensava neles. Cada pessoa corria para um lado. Foi uma coisa que eu nunca vou esquecer na minha vida. Tentei pegar táxi, e todos negavam, estavam abandonando os carros, uns nem ouviam os apelos, até que consegui entrar em um”, lembrou para o Boatos.org, 40 anos depois. Na volta para casa, não viu nada de diferente. As ruas estavam enlameadas por causa das cheias dos dias anteriores.
O fato é que o boato (até hoje com origem não esclarecida) foi alimentado pelo sofrimento que a cidade, àquela época, segundo o IBGE, há com mais de um milhão de habitantes, experimentava naquele mês. Pelo menos 107 pessoas morreram no Estado e 60 mil ficaram desabrigados. Esta é uma história passada, evidentemente, em um período em que não existia internet e que as redes sociais eram tão somente aquelas que se formaram nas ruas e também movidas pelos meios de comunicação de massa. Houve quem sugerisse ter sido um ato terrorista.
Perigo iminente
Os fatos incríveis, desastrosos e trágicos daquele 21 de julho de 1975 foram esmiuçados pelo jornalista Homero Fonseca, no livro “Viagem ao Planeta dos Boatos”. A obra, que traz depoimentos de populares, artistas (como o falecido Ariano Suassuna) e de representantes públicos, revela os contextos e também responsabilidades. O inquérito policial, que nunca chegou a culpados, por exemplo, ouviu radialistas que podem ter influenciado no pânico. “A Rádio Olinda dera em primeira mão a notícia do tumulto causado pelo boato e, com isso, realimentou o processo, ampliando suas dimensões”, escreveu Homero Fonseca no livro. O radialista Ralph de Carvalho se defendeu: “Em nenhum momento dissemos que a barragem estourou. Informamos a história do carro de som e o tumulto na rua. Prometemos averiguar…”
Tempos da internet
Homero Fonseca, que foi editor-chefe do Diário de Pernambuco, publicou há quatro anos, mais um capítulo e reeditou a obra publicada. No novo conteúdo, ele amplia a abordagem para um novo boato de estouro da Tapacurá (36 anos depois). Foi quando as comportas da barragem de Carpina foram parcialmente abertas para melhorar o fluxo . Agora, nos tempos na internet. “Internet e celular foram usados freneticamente pelos recifenses. A palavra Tapacurá alcançou os trending topics”, explicou Fonseca para o Boatos.org. No novo capítulo, ele acrescenta: “O fato é que o frenesi de troca de informações pela internet, verdadeiras e falsas, tinha a ver com o clima de expectativa e medo da cidade. E encontrou terreno fértil no ambiente on line (…) A situação chegava às raias do surrealismo”.
O pesquisador-jornalista esclarece que os boatos são alimentados por dados reais, como os transbordamentos de canais, os alagamentos de ruas, a percepção do perigo iminente, informações fragmentadas, o fechamento preventivo de escolas e comércio, e muitas pessoas nas ruas ao mesmo tempo. “Num mundo em que as pessoas deixaram de ser receptores passivos de informação para atuar também como emissores – com seus aspectos positivos – a democratização, e negativos – a leviandade – cabe aos analistas e poderes institucionais tirarem as lições dessa realidade, onde velhos fantasmas voltam a assombrar em novos meios”, acrescenta. Se não houver informação rápida, o fantasma de julho de 1975 vai rondar Recife a cada nova enchente.