Boato – Áudio aponta que proposta de reforma da Previdência não muda nada nas regras de aposentadorias para pobres, mulheres e foi criada só acabar com a desigualdade no Brasil.
Caramba! Neste ano, nenhuma história que circulou na internet nos deu tanto trabalho. Mesmo assim, resolvemos ir a fundo no caso porque a causa é nobre: informações sobre o seu futuro. Ou melhor, informações sobre a reforma da Previdência (proposta de emenda à Constituição que acabou de ser entregue no Congresso).
Já há algum tempo, temos batido na tecla de que é preciso discutir a reforma racionalmente. E, em algumas oportunidades, desmentimos histórias que atacavam a PEC como, por exemplo, a do fim da aposentadoria especial dos professores ou da “retirada” de fundos da Previdência por parte do governo. Porém, hoje, a situação se inverte.
Um áudio de uma pessoa que, claramente, é defensora do governo Bolsonaro e simpática aos governos militares descreve “mil maravilhas” da reforma da Previdência. Dentre adjetivos e ataques a classe política, “comunistas”, mídia e outros, ele vai falando sobre supostas informações que “não querem que você saiba” sobre a reforma.
Dentre os itens, ele diz que a Globo disse que a reforma é ruim, que não muda nada na reforma para mulher e para ninguém, que políticos trabalham um mês e ganham R$ 30 mil de aposentadoria, que pensão por morte só muda para ricos, que o governo quer a reforma para igualdade, que pobre não vai pagar alíquota etc etc etc.
Não vamos entrar no mérito político da questão e não vamos colocar o áudio por completo aqui (que é acompanhado pela seguinte mensagem: Não deixe de ouvir esse áudio sobre a reforma da previdência, Muito esclarecedor”). Também não sabemos se a pessoa do áudio “só se enganou” em relação a algumas regras. Mas vamos corrigir item por item do que achamos de errado na gravação (ao todo, foram 10 itens). Vamos aos fatos.
Reforma da Previdência não muda nada nas regras de aposentadoria para pobres e mulheres?
Na primeira parte, o autor do áudio se apresenta, fala o currículo (que para o caso de hoje é algo irrelevante) e diz que gravou o áudio para os eleitores de Bolsonaro porque “os petistas têm uma doença que afeta a percepção da realidade”. A partir daí ele começa a falar sobre a reforma. Vamos ao primeiro trecho no qual há informações erradas.
1) Agora estão comprando e repetindo o discurso da Globo e do PT. Me mandam vídeos feitos por petistas falando que a reforma é ruim.
De fato, o PT (como oposição ao governo) tem feito críticas à proposta de reforma da Previdência da mesma forma que Bolsonaro fez quando não estava no governo (ele chegou a se pronunciar contra a reforma de Temer). Porém, não é fato que o “discurso da Globo” é contrário à reforma. Economistas dos veículos da Globo têm repetido exaustivamente que a reforma é necessária para o país.
2) Então, não muda absolutamente nada na reforma para a mulher não muda pra ninguém. […] Pra quem tá hoje trabalhando, vai se aposentar ou tá aposentar agora, falta pouco tempo, falta muito tempo, para os políticos que estão aí, para quem ganha uma fortuna, para quem ganha pouco… essas regras não mudam. Isso é proibido pela Constituição… só se nós tivéssemos uma intervenção militar.
A colocação de que “não vai mudar nada para ninguém” não faz o mínimo sentido. Afinal, se não mudasse nada, não seria reforma. Ao contrário do que aponta o áudio, as regras (inclusive a idade mínima de 65 anos para homens e 62 anos para mulheres) para aposentadoria começam a valer (se aprovada a reforma) a partir da sanção presidencial.
A única coisa que faz sentido (bem pouco) na declaração é que haverá um período de transição para quem está próximo a se aposentar. Em 2020, as pessoas poderiam se aposentar pela regra “86/96” (soma da idade com o tempo de serviço) desde que cumprido o tempo mínimo de contribuição (30 anos mulheres e 35 para homens). A regra aumenta em um “ponto” por ano até chegar a 100/105. No caso das mulheres, esse número seria alcançado em 2033. Para os homens, 2028.
Há, ainda, uma fase de transição na idade. Se cumpridos os 30 anos de contribuição, há uma idade mínima de 61 anos para homens e 56 para mulheres. Esse mínimo vai subindo seis meses a cada ano até chegar em 65 anos para os homens (2028) e 62 para mulheres (2032).
Ainda há a opção para quem está a menos de dois anos de se aposentar (33 anos de contribuição para homens e 28 para mulheres) “pagar” um pedágio de 50% do tempo restante. Ex: quem precisa trabalhar dois anos, vai trabalhar três. A má notícia é que essa opção sofre fator previdenciário.
Ou seja: a tese de que a reforma da Previdência só vai atingir quem ainda não está trabalhando vem de uma interpretação errada do projeto. Mesmo que o trabalhador passe por uma fase de transição, de alguma forma será atingido e, pelos nossos cálculos, em cerca 15 anos, as regras valeriam para todos.
Sobre o poder de mudar. Bolsonaro, sozinho, de fato, não muda as regras. Mas se aprovada uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição), é possível, sim, haver mudança. A exceção seria se as regras da Previdência fossem uma cláusula pétrea, o que não é o caso.
3) A partir de que, vamos supor, o próximo presidente que vai entrar. Esse já se encaixa na nova reforma e o que acontece hoje: o presidente ou deputado ou senador, ele fica lá um mês no cargo e se aposenta. E recebe 30, 40, 50 mil por mês.
Mais uma informação que não procede. O primeiro erro da premissa está em dizer que “um político fica um mês no cargo e se aposenta”. No caso do presidente, não existe aposentadoria (esse texto, inclusive, desmente a informação que aponta que até interinos ganhariam o benefício). O único benefício que presidentes que foram efetivados no cargo têm são a oito servidores (dois motoristas, dois seguranças e quatro assessores).
Sobre deputados e senadores, a informação também está errada. Ninguém vai ganhar salário integral com um mês de salário. Hoje, para se aposentar é preciso 35 anos de contribuição e 60 de idade pelo PSSC (fundo de previdência dos congressistas). O que é possível ainda é pedir aposentadorias proporcionais. Se alguém foi deputado por quatro anos, vai receber 4/35 do valor da aposentadoria. Vale lembrar que ele não é cumulativo com a aposentadoria do INSS. Até 1997, era possível se aposentar com oito anos de contribuição e 50 de idade.
O texto preliminar prevê, de fato, mudanças nas regras para políticos a partir da próxima magistratura. Eles passariam a ganhar, no máximo, o teto do INSS (agora resta esperar se a regra não será mudada no Congresso). Em tempo: a reforma não muda a regra para ex-presidentes, que continuam sem receber nada (só os servidores).
4) Então para a mulher não muda nada […] muda é a seguinte pessoal. Marido ganha 40 mil reais por mês, o marido se aposenta e fica mais 30, 40 e 50 anos vivo, continua recebendo 40 mil por mês e alguém está pagando essa aposentadoria. Na regra nova, o cara que ganha 40 mil por mês, ele vai pagar a aposentadoria dele. E você paga a sua.
Se o sujeito que ganha R$ 40 mil por mês contribui com o teto do INSS e, quando se aposenta, recebe o teto do INSS (em 2019, R$ 5.882,92). É claro que uma pessoa que ganha esse montante investe (ou deveria investir) o dinheiro para que renda fundos. Quem ganha acima do teto é quem contribui para regimes especiais. Não dá para misturar INSS com isso.
5) A partir de agora o país está sendo governado por pessoas de bem, homens honestos e estão mudando as regras para que seja igual para todo mundo.
Nesse trecho do áudio, o locutor começa a falar que desde que os militares saíram do poder, só há ladrão e que agora “são pessoas de bem” no poder. Vamos nos abster de comentários sobre isso (quero que só que você reflita mentalmente sobre essa colocação) e focar na parte final da frase: a de que o governo está mudando as regras para que “seja igual para todo mundo”.
É óbvio que essa informação não procede. O grande problema (aliás, pepino para o governo) é que o INSS gera muitos gastos (por causa de fatores como o envelhecimento da população). Por causa disso, há uma pressão (inclusive do mercado financeiro) para que o governo diminua o déficit das contas públicas. Com as medidas, o governo quer economizar mais de um trilhão de reais em dez anos.
Qualquer informação que fale sobre “cortar privilégios” e diminuir desigualdades é pura retórica para conquistar apoio popular. A prova disso é que grupos desfavorecidos socialmente (como trabalhadores rurais) tiveram um endurecimento de regras enquanto grupos “não tão desfavorecidos” (militares) ficaram de fora da reforma (vale fazer a ressalva que há uma proposta de reforma em separado para a classe. Aguardemos).
6) O marido ganha R$ 40 mil por mês, se aposenta e continua ganhando R$ 40 mil e aí ele morre com 100 anos de idade. A mulher que ia continuar recebendo os mesmos R$ 40 mil por mês para torrar no salão de beleza, ir para Nova York a cada seis meses… o que o governo diz: não. Só vai receber metade vai receber 20 mil. […] Agora isso para pobre não vale não. É para rico que vale.
Mais um erro. Alguns aliás. Além de se basear numa premissa de que o INSS paga acima do teto previdenciário, a pessoa erra na porcentagem. Não é metade e sim 60% do benefício que está previsto para ser recebido. E isso vale para todos: “ricos” e “pobres”.
7) O que acontece a partir de hoje: o rico que paga a seus 7, 8% vai pagar 11% hoje. Ele vai passar a pagar 19%. O cara ganha 30 mil por mês vai pagar 19% ao invés de 11 que ele paga hoje. […] Para quem ganha menos de R$ 4.500 por mês não vai nem contribuir, certo?
Premissa certa, mas números muito errados. De fato, há a implementação de uma tabela progressiva. Se a pessoa se aposenta pelo INSS e ganhava R$ 30 mil, pagava alíquota de 11% até o texto do benefício. Agora, a proposta de alíquota máxima é de 11,68%. Para quem ganha menos de R$ 4.500, vai ter que continuar contribuindo sim.
Mesmo para quem tem regime próprio de Previdência (que vai ter que pagar uma alíquota mais alta), o valor não chega a 19%. O máximo é de 16,79% (valor de alíquota referente aos R$ 39 mil, teto do funcionalismo público).
8) Não tem essa conversa de que vai aumentar a idade, de que ninguém vai se aposentar, que vocês vão trabalhar até morrer. […] Você vai para se aposentar com a mesma idade que os povos do mundo inteiro se aposentam. Só aqui no Brasil que é diferente […] Você vai se aposentar com a mesma idade que todo cidadão do mundo se aposenta, inclusive países que têm expectativa de vida muito menor do que a nossa.
Só o fato da criação de uma idade mínima (65 anos para homem e 62 para mulheres) já derruba a tese que “não tem conversa de que vai aumentar a idade”. Outra tese que é derrubada é a que aponta que o “brasileiro vai se aposentar com a mesma idade dos povos do mundo”. Dentre os países do G20, o Brasil seria o 7º com maior idade de aposentadoria entre homens e 12º na aposentadoria entre mulheres. Vale dizer que nem todos os países têm “idade mínima obrigatória”.
9) Nas regras novas do Bolsonaro você paga a sua aposentadoria chamada capitalização. Se você ganha 1.000 e 2.000 e 3.000 e 5.000 você vai contribuir com 1% , 2%. O rico pagava 11 vai pagar 19. Então, a reforma cobra mais dos ricos e menos dos pobres.
Sobre a “parte do rico” já foi desmentido no item 8. Sobre a parte da capitalização, outro erro. Ainda não há regras definidas. Mas é provável que, se a pessoa quer receber um valor de aposentadoria digno, vai ter que contribuir mais de 1%. O motivo é simples: a pessoa vai receber na aposentadoria o que contribuiu (com juros). Só. Neste caso, as contas não fecham e é improvável que o regime de capitalização seja “generoso” para cobrir eventuais diferenças.
10) Se o cara na reforma nova fizer 60 anos, ele vai passar a receber 400 reais até ele fazer os 65. […] É pra quem nunca contribuiu para, o cara que vive na miséria, para tirar as pessoas da pobreza. Quando ele faz 60 anos, ele nunca contribui, vai receber 400 reais até os 65. Com 65 ele passa a receber o salário mínimo.
Mais uma informação errada. De fato, há uma previsão nas regras do BPC (que pode ser alterada) da pessoa que se encaixa nas regras passar a receber R$ 400 após os 60 anos. Porém, ela passaria a receber um salário mínimo apenas com 70 anos e não com 65.
Resumindo: se a gente fosse sair da questão da reforma da Previdência, teríamos mais coisas a falar. Porém, o que temos por enquanto é que o áudio que circula online é recheado de opiniões, dados errados (que se repetem e se reforçam) e informações que não procedem. Que a reforma é necessária, até podemos discutir. Mas engolir que ela só serve para diminuir a desigualdade e que nada vai mudar nas regras de aposentadoria é forçar a amizade.
Ps.: Esse artigo é uma sugestão de leitores do Boatos.org. Se você quiser sugerir um tema ao Boatos.org, entre em contato com a gente pelo site, Facebook e WhatsApp no telefone (61)99177-9164.