O estranho caso das “milhares de vacinas vencidas” mostra como erros na tabulação de dados somados a análises equivocadas podem gerar alarmes falsos ou desinformação.
Até a última sexta-feira (2), alguns temas estavam sendo cotados para serem tratados na nossa seção A Semana em Fakes (confira todos os textos aqui). Pensamos em falar sobre a onda de boatos que circularam após a morte de Lázaro Barbosa e que tentavam (novamente) imputar a pecha de “defensor de bandidos” a grupos de que preocupam com direitos humanos. Também pensamos em falar como “memes inocentes” (como em uma frase atribuída a Dilma) ajudam a reforçar pensamentos falsos sobre figuras públicas. Porém, uma história atropelou toda a pauta em questão.
Conteúdos apresentavam, inicialmente, títulos desta natureza: “Milhares (valor tão aberto que pode significar de 1.000 a 999.999 pessoas) no Brasil tomaram vacina vencida contra Covid” e davam a impressão de uma catástrofe.
É claro que a informação (com toda justificativa) causou um alvoroço entre autoridades em saúde (principalmente municipais), nas redes sociais e até entre quem buscava por informações no Boatos.org. Termos relacionados ao assunto ficaram entre os 10 mais buscados no site no dia 02/07/2021. Entre os 30 mais buscados, 27 eram sobre “vacinas vencidas”.
Não marcamos a informação de que “milhares tomaram vacina vencida” como “#boato” (como fazemos em todas as nossas checagens) e também não destacamos o assunto no nosso A Semana em Fakes por alguns detalhes que ainda precisariam ser esclarecidos para cravar a informação como “completamente errada”.
Dois são os principais: 1) O que ocorreu com os lotes de vacinas que venceram e não foram aplicados? Foram descartados e saíram da contagem ou foram aplicados (vencidos ou não) e ainda não foram tabulados ou, ainda, foram tabulados com outros dados errados? 2) Alguns municípios apontaram que vão apurar erros na vacinação e, no mínimo, um admitiu que aplicou doses fora da validade (no total de 72 doses).
Mesmo não sendo destaque no nosso artigo semanal ou mesmo sendo checado como #boato, entendemos que o assunto merecia ser melhor destacado. Por isso, resolvemos escrever um texto apontando por que é preciso tomar cuidado com dados coletados (mesmo de fontes públicas) para não criar um pânico desnecessário.
O que disse a matéria sobre vacinas vencidas?
A matéria “Milhares no Brasil tomaram vacina vencida contra Covid” usou como base para a denúncia dados coletados do DataSUS, Sage (Sala de Apoio à Gestão Estratégica) e do Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra Covid-19.
A tese que apontava que as vacinas foram aplicadas após o vencimento se baseou no cruzamento de dois dados: o registro do dia da aplicação da vacina nos sistemas do Ministério da Saúde e a data de validade dos lotes das vacinas em questão. O resultado foram 26 mil aplicações de 8 lotes da AstraZeneca em 1.532 cidades.
Quais foram os erros da matéria?
A matéria estaria completamente correta se não fosse um detalhe que, pelo menos na redação do conteúdo, foi ignorado. Não foram levados em conta possíveis erros de registro ou mesmo na tabulação dos conteúdos. Cravou-se que “26 mil tomaram vacinas vencidas” sem termos a certeza disso. E aí precisamos de uma parênteses.
Sem fazer juízo de valor se erros de tabulação são justificáveis ou não (em um mundo ideal precisaríamos ter dados 100% corretos para que, inclusive, pudéssemos ter um planejamento melhor de políticas públicas), é fato que estamos em uma campanha tão maciça de vacinação (até o momento, mais de 100 milhões de vacinas foram aplicadas e alguns dados são registrados à mão para, apenas posteriormente, ir para os registros informatizados) e, com esse cenário, erros devem (ou deveriam) ser levados em conta na hora da interpretação de dados.
Só para citar outros exemplos no qual a interpretação de dados oficiais errados resultou em desinformação: desmentimos por quatro vezes a informação errada de que “não haveria pandemia” porque números do Portal da Transparência do Registro Civil não mostravam tantos óbitos por Covid-19 (aqui, aqui, aqui e aqui). São situações distintas em relação a de hoje (até porque surgiram em perfis considerados não-confiáveis), mas com algo em comum: acreditou-se no número sem levar em conta outras nuances.
Quando a informação sobre vacinas vencidas se espalhou, as prefeituras com mais doses no “ranking de vacinas vencidas” começaram a se manifestar. Nenhuma das dez cidades no topo da lista (que somaram 11.202 doses) confirmou que “aplicou vacinas fora do prazo de validade”. Oito delas negaram que tenham feito a aplicação.
Maringá, a primeira cidade da lista, apontou que todas as doses foram aplicadas dentro do prazo de validade e que a discrepância entre data de aplicação e validade se deu por causa do atraso na transferência de dados ao Ministério da Saúde (de acordo com a Secretaria Municipal de Saúde, os dados demoravam até dois meses). Em redes sociais, a prefeitura apontou como os próprios cidadãos poderiam verificar na carteira de vacinação se havia problemas com a validade. Nenhum internauta apontou para aplicação fora do prazo de validade.
O jornalista Rodrigo Menegat apontou para problemas nos dados coletados em Maringá. Nos registros coletados por ele, é mostrado um pico de vacinação no dia 22 de abril. Neste dia, a cidade, de acordo com os registros, teria aplicado 80 mil doses de vacinas. Foi justamente neste dia que a imensa maioria das vacinas vencidas teriam sido aplicadas, de acordo com o levantamento dele. Só que nos dados oficiais foram anunciados 5.500 aplicações de vacinas naquela data.
Ou seja: o exemplo mostrado pelo jornalista denota que dados represados foram registrados em apenas uma data. Isso significa que vacinas aplicadas em datas anteriores foram registradas em 22/04 (lembrando que a validade do lote era 15/04). Este dado somado a admissão de que possivelmente a data da aplicação pode não ter sido preenchida corretamente e a falta de registros de pessoas que tomaram vacinas vencidas (cadê o personagem?) faz com que a informação sobre Maringá não se sustente.
Situações parecidas (prefeituras desmentindo que aplicaram vacinas vencidas, ressaltando que são feitas checagens rigorosas e apontando para erros de dados) se repetiram em relação às cidades de Belém, São Paulo, Salvador, Rio de Janeiro (que anunciou que já fez uma rechecagem nos dados), Cacoal, São Luís e Santos. Nilópolis e Bom Jesus do Itabapoana apontaram que estão checando os dados, mas não confirmaram nenhum caso de aplicação de vacina fora da validade.
Nas redes sociais, outros jornalistas, cientistas de dados e pesquisadores (veja alguns exemplos aqui, aqui, aqui e aqui) também apontaram sobre problemas em se acreditar cegamente nos dados apresentados.
Com isso, a matéria cravou (salvo um plot twist) de forma imprecisa que 26 mil pessoas tomaram vacinas vencidas. O número real confirmado é, até o momento, 72. Podemos chegar aos “milhares” (1.000)? Sim (também podemos não chegar). Podemos chegar a 26 mil? Não, pelo menos nos lotes apresentados na reportagem.
Quais as consequências disso?
Se a matéria tivesse uma abordagem diferente (como uma crítica a forma que os dados são tabulados no sistema do Ministério da Saúde), seria de grande valia. Mas, infelizmente, a forma que ela foi apresentada pode resultar em movimentos indesejáveis em um momento no qual algumas pessoas ainda nutrem desconfiança sobre o processo de vacinação.
A consequência negativa mais óbvia (esperamos que isso não ocorra) é a criação de uma atmosfera de medo de se vacinar. Já temos desinformação sobre a eficácia vacinas de certos laboratórios e efeitos colaterais de outros. Tudo que não precisamos é de pessoas achando que estão aplicando vacinas vencidas por aí.
A segunda consequência é, infelizmente, de descrédito a informações que circulam na mídia tradicional. É indubitável que a mídia mais acerta do que erra. Mas, infelizmente, erros ou imprecisões costumam serem mais lembrados do que acertos. Mesmo com a matéria tendo o título corrigido para “Registros indicam que milhares no Brasil tomaram vacina vencida contra Covid” em vez de “Milhares no Brasil tomaram vacina vencida contra Covid”, o estrago já estava feito.
De positivo, temos um exemplo de que casos como esse mostram que ainda temos muitos problemas com os dados disponibilizados pelos governos. É possível que a história jogue luz para a importância de temos dados mais precisos para evitar desinformação.
O mesmo cuidado deve se estender a produtores de conteúdo. Não adianta registros mostrarem que “milhares tomaram vacinas vencidas” se não temos nenhuma história apontando para um exemplo real ou mesmo se autoridades públicas dão informações plausíveis sobre o que pode ter ocorrido. Em um jogo de erros de quem preencheu os dados e de quem os interpretou, não há vencedores.