História falsa que correlaciona vacinas e aids foi importada de sites no exterior, ganhou “validação” presidencial, foi desmentida e necessitou de “fakes anexas” para se sustentar. Edgard Matsuki, editor do Boatos.org, fala sobre esse ciclo no A Semana em Fakes.
Em uma live há dez dias, o presidente Jair Bolsonaro ajudou a reverberar o que, para muitas pessoas, foi a pior fake news espalhada por ele na pandemia (na nossa opinião, o “pacote” do pronunciamento de 24/03 teve mais alcance e foi mais nocivo): a informação falsa de que vacinas contra Covid-19 poderiam causar a síndrome da imunodeficiência adquirida (mais conhecida como aids).
Não vamos entrar no âmbito do conteúdo em si (isso porque é claramente falso e toda explicação está neste artigo do Boatos.org), mas vamos nos debruçar para analisar além do conteúdo. Isso porque o caso, do nascimento ao seu desmonte e esquecimento, é exemplar para entendermos como funciona o ciclo da desinformação.
Se engana quem pensa que a história começou nas mãos do presidente. Na realidade, os primeiros registros da tese se deram em sites com conteúdo conspiracionista e antivacinas do Reino Unido. A história surgiu em um site chamado britânico The Exposé, que sistematicamente publica conteúdos falsos sobre vacinas. E, apesar de citar “relatórios do Reino Unido” como fonte, o site inventa a correlação de vacinas e aids sem nenhuma comprovação.
O conteúdo foi muito republicado entre sites conspiracionistas. Um dos sites, o Before It’s News, que publicou o conteúdo em 12 de outubro, tem teses como a defesa que a Terra Plana entre seus últimos conteúdos. No dia 14 de outubro, o conteúdo “chegou ao Brasil”. Um site que também já publicou desinformação sobre a covid copiou e traduziu o conteúdo que circulava no Reino Unido (obviamente, sem fazer qualquer checagem).
Nos dias que se seguiram, podemos ver o crescimento do compartilhamento do conteúdo falso em redes sociais como Twitter e Facebook (principalmente por meio de perfis de pessoas que são contra a vacinação e simpáticas ao presidente). Tanto que, no dia 19 de outubro, o Boatos.org publicou um desmentido do conteúdo. Ainda antes da fala de Bolsonaro (na tarde de 21 de outubro), o site Aos Fatos também desmentiu a informação.
Não foi suficiente. Na noite do dia 21 de outubro, Bolsonaro “leu” a manchete do site Before It’s News (o mesmo que fala sobre terra plana) em sua live semanal. Por alguns dias (mais exatamente dois), o conteúdo falso espalhado pelo presidente ficou entre “convertidos” (pessoas que assistiram a live e o apoiam). A situação se modificou no dia 23 de outubro.
Cortes do vídeo em redes sociais começaram a viralizar e críticas perante a fala começaram a brotar de todos os cantos da internet. A mídia cobriu a repercussão da fala falsa. Mais uma vez, Bolsonaro pautou a mídia com uma fake news.
A pressão sobre Bolsonaro cresceu a ponto de o caso passar a ser incluído no relatório final da CPI da Pandemia, que fez um pedido formal de banimento do presidente do Brasil de redes sociais. A essa altura, o vídeo de Bolsonaro já havia sido retirado de plataformas como o Instagram, Facebook e YouTube (isso ocorreu em 25 de outubro).
O revés também deu gás para outras notícias falsas circularem na internet. Uma delas foi utilizada como “justificativa para a fala” e citava uma matéria da Exame sobre vacinas e HIV como “a fonte da informação” para Bolsonaro. Como apontamos no dia 26 de outubro, a matéria da Exame não tinha qualquer relação com a tese e o título lido era, de fato, dos sites conspiracionistas e que publicam fake news do Reino Unido.
Outros conteúdos relacionados à denúncia também viralizaram. O mais proeminente deles apontava para “diversos vírus” contidos nas vacinas contra Covid-19 e, como era falso, foi desmentido no Boatos.org no dia 29. A essa altura, a polêmica sobre “vacinas e aids” já havia sido substituída por outros factoides devidamente espalhados na internet.
A análise deste caminho nos dá algumas respostas sobre como funciona o ciclo de uma fake news na atualidade. Vamos listá-las.
1) É preciso que se faça algo contra estes sites que publicam desinformação e lucram com pageviews e publicidade. Sem eles, figuras públicas teriam mais dificuldade de espalhar teses mirabolantes. 2) A fala de Bolsonaro teve um peso positivo e negativo na sobrevivência da fake news. Ao ponto que reverberou a desinformação, fez com que ela ficasse perceptível a ponto de ser execrada publicamente. Talvez, ela tivesse perdurado mais se tivesse fugido do radar da mídia e de opositores ao presidente. 3) O mais triste: mesmo com todos desmentidos e assunto “encerrado”, haverá pessoas que começarão a acreditar na tese absurda (ou em parte dela) e deixarão de se vacinar por isso.
Por outro lado, o caso também suscita dúvidas que deixarei para reflexão:
1) Há uma rede entre sites conspiracionistas estrangeiros e do Brasil ou, simplesmente, há uma cópia não-autorizada de conteúdo falso que circula no exterior? 2) Como a informação falsa chegou ao presidente e sua equipe e por que não foi checada? Houve “distração” ou má-fé? 3) Qual era a intenção de Bolsonaro ao espalhar uma notícia falsamente absurda? Pregar para convertidos sem que ninguém percebesse e, assim, manipular informação ou falar algo tão absurdo a ponto de desviar a pauta dos verdadeiros problemas que seu governo está enfrentando?
Deixo as perguntas para quem tiver capacidade de as responder.
Trends da semana
As palavras mais buscadas no Boatos.org nos últimos dias foram, em ordem crescente, Perfume do mal, Perfume, Pfizer, Coca cola, Chevrolet, Lula, Bolsonaro, Roger Hodkinson, Interpol e Aids.
Os desmentidos mais lidos do Boatos.org nos últimos dias foram, em ordem crescente, sobre a notícia falsa que apontava que membros do Boko Haram haviam sido mortos por um raio no momento de adentrar uma igreja, que o cantor Thiaguinho havia iniciado um relacionamento com o jogador de vôlei Bruninho, que Lula, o PT e o STF estavam sendo investigados pela Interpol, que há um golpe com o “Perfume do Mal” sendo aplicado” e que o jogador Ciro Immobile havia elogiado Bolsonaro.
No Twitter, o conteúdo com maior engajamento era o que desmentida que mais de 1000 pessoas haviam morrido por causa da vacina contra Covid-19. No Facebook, o conteúdo mais compartilhado era o que desmentia uma informação falsa que apontava que Bolsonaro havia descoberto tratores de Dilma que iria para África.
No Instagram, o conteúdo mais curtido era o que desmentia que a revista Exame havia sido a fonte da fake news sobre vacinas e aids lida por Bolsonaro. No Telegram, a notícia mais lida foi a que desmentia que os integrantes do Boko Haram morreram ao serem atingidos por um raio. Por fim, no YouTube, o conteúdo mais visto era o que desmentia que há um golpe que pede para você apertar a tecla 1 do telefone.
Edgard Matsuki é editor do site Boatos.org, site que já desmentiu mais de 6 mil notícias falsas
Uma das novidades do Boatos.org para 2021 é a seção “A Semana em Fakes”. Periodicamente, faremos análises sobre os assuntos mais recorrentes em termos de desinformação na internet. Este conteúdo ficará aberto para republicação em outros veículos de mídia. No momento, publicamos o conteúdo no Portal Metrópoles, Portal T5, Conexão Marília e O Anhanguera (caso tenha interesse, entre em contato com o Boatos.org para saber as condições). Para ver todos os textos da seção, clique aqui.