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Oferendas nas encruzilhadas eram para escravos fugitivos #boato

Boato – Professor Leandro, historiador da UnB, contou que as oferendas da Umbanda nas encruzilhadas surgiram para escravos que fugiam de feitores.

Religião é um tema que nunca sai do debate na internet. Há quem defenda que o cristianismo é a única religião válida, há quem defenda que não deveria existir nenhuma religião e há que acredite que toda religião é válida. No meio disso, as religiões de matrizes africanas (como a Umbanda e o Candomblé) são questionadas por alguns e defendida por outros. A história na qual vamos falar hoje foi compartilhada pelo segundo grupo.

Um texto que circula na internet aponta que o “professor Leandro, da UnB” disse que as oferendas deixadas nas encruzilhadas têm um valor para além da religião. O tal professor teria dito que era uma forma dos negros alimentarem “irmãos escravos” que fugiam dos feitores. O texto foi compartilhado em algumas páginas do Facebook e teve muitos compartilhamentos. Leia:

De acordo com o professor Leandro (historiador da UnB) as oferendas deixadas nas encruzilhadas era uma forma dos negros alimentarem seus irmãos escravos que estavam fugindo dos feitores. Os pretos escolhiam lugares estratégicos por onde escravos fugitivos passariam e colocavam comida pesada; carne, frango e farofa porque sabiam da fome e dos vários dias sem comer desses indivíduos e deixavam também uma boa cachaça pra aliviar as dores do corpo e dar-lhes algum prazer na luta cotidiana.

As velas eram postas em volta dos alimentos pra que animais não se aproximassem e consumissem o que estava reservado para o irmão em fuga e aí surge o que todos conhecem como macumba. O rito permanece sendo realizado pelas religiões afro como forma de agradecimento e pedidos aos seus ancestrais e em homenagem a seus santos. A cultura branca e eurocêntrica foi quem desvirtou a prática, para causar medo, terror e abominação e reforçar os preconceitos e discriminações contra os negros.

Não tenho religião e não pratico nenhum culto mas gosto de saber que já houve tanta solidariedade no mundo e que as pessoas se preocupavam muito umas com as outras a ponto de fazerem um esforço pra alimentarem alguém mesmo sem conhecerem o seu rosto. Hoje vejo tanta gente em igrejas e igrejas em tantos lugares servindo apenas como instrumento de manipulação e exploração da fé alheia para manutenção do poder. Enfim nós não evoluímos.

Oferendas nas encruzilhadas eram deixadas para escravos fugitivos?

A história foi muito compartilhada, principalmente por pessoas que defendem o sincretismo religioso. Porém, há dois detalhes que muitos não se atentaram. 1) Se você analisar o texto, ele desmerece a religião. 2) A história da origem das oferendas nas encruzilhadas é uma balela. Vamos aos fatos.

Antes de analisar o conteúdo em si, tentamos procurar pelo “professor Leandro da UnB”. Como era de se imaginar, não encontramos nada. Na lista de docentes do departamento de história da universidade, não há nenhum “Leandro”. Por sinal, que texto é esse que não dá nem o sobrenome do professor?

Atualizado em 16/06: alguns leitores nos informaram que há um “professor Leandro” na UnB. Apesar de o nome do professor Leandro Bulhões não constar na lista de docentes de história da Universidade de Brasília, ele dá aulas de História da África como professor substituto na instituição. 

Depois da repercussão da história, Bulhões divulgou uma nota explicando o mal-entendido. Ele endossou que nunca falou sobre a história de oferendas e escravos. O que aconteceu foi uma distorção de uma fala dele em uma banca de TCC na universidade. Ou seja: o próprio “professor Leandro” afirmou que a tese de oferendas e escravos é falsa. 

Falando da história em si, o primeiro ponto que desmascara a farsa é a falta de registros históricos que apontem para a tese das oferendas nas encruzilhadas e os escravos. É possível que escravos fugitivos tenham, de fato, se alimentado de oferendas em alguma oportunidade (o que é bem comum com moradores de rua, por exemplo). Mesmo que tenha acontecido isso, não foi algo que marcou a história. Muito menos foi a motivação para o ato da oferenda no Candomblé, Umbanda e outras religiões.

Além de não existir registros sobre a história contada na web, especialistas refutaram a tese das encruzilhadas e escravos. O historiador Luiz Antônio Simas foi enfático ao classificar a mensagem como “horrorosa, falaciosa e fantasiosa”. Se você quiser saber mais sobre o assunto, vale ler o post do professor.

Três pessoas me enviaram um texto horroroso sobre cerimônias em encruzilhadas. O texto é fantasioso, racista e busca, no fundo e no raso, desqualificar os sentidos diversos que as encruzilhadas têm para as sofisticadas cosmogonias e espiritualidades afro-diaspóricas. O que está escrito ali é uma barbaridade.

Diante de um texto falacioso e fantasioso sobre oferendas nas encruzilhadas que está circulando na rede – que me parece ter a intenção de desqualificar as cosmogonias e crenças afro-brasileiras ao tirar das encruzilhadas as complexas atribuições de sentidos que os caminhos cruzados têm – reproduzo, com mínimas modificações, um texto que escrevi em 2014 para o jornal O Dia.

O historiador “com nome e sobrenome” Marcelino Conti (da UFF) também refutou a história. Ele classificou a estória como “para boi dormir”. Leia trecho do que ele escreveu e se quiser saber mais, clique aqui.

Em meios aos ataques de racismo religioso, (as centenas de casos de intolerância somada as centenas de leis municipais equiparando as oferendas como lixo, e a tentativa de criminalizar o sacrifício de animais em rituais das religiões de matriz africana) surge a estória pra boi dormir: a “macumba” surgiu das oferendas deixadas nas encruzilhadas para que os escravos fugitivos pudessem se alimentar para aguentarem a fuga.

Como a estória esta mal contada ela começa dizendo que um “Professor Leandro”, que ninguém sabe o sobrenome, foi quem contou a grande novidade histórica, demonstrando total desconhecimento de coisas básicas das religiões de Matriz Africana.

Resumindo: a história que aponta que as oferendas nas encruzilhadas surgiram para alimentar escravos fugitivos não só é furada como também desmerece todo o sentido religioso e de fé envolvidos na Umbanda, Candomblé e outras religiões. Se você acha que está ajudando as religiões de matriz africana com este texto, está enganado. Não caia nessa.

PS: Este artigo foi uma sugestão de Fernando Luiz, Felipe Gomes, Ialaa, Cesar Lima e de diversos leitores via WhatsApp. Se você quiser sugerir um tema para o Boatos.org, entre em contato com a gente pelo site, Facebook ou WhatsApp, no número (61) 9331 6821.

Contamos também com a colaboração de Bárbara Dias e Ernesto Felício para esclarecermos a história com a versão do professor Leandro Bulhões.