Boato – Carta de uma mãe aponta que seu filho Otávio, de 14 anos, se suicidou em 22 de maio de 2016 porque ele ficava 4 horas por dia em jogos eletrônicos (como COUNTER STRIKE).
Uma das fases mais turbulentas da vida de uma pessoa é, sem dúvidas, a adolescência. Em meio às incertezas sobre o futuro e a percepção de que o mundo é muito mais complexo do que aparentava ser, as mudanças físicas e a pressão de “pertencer” a grupos fazem muitos adolescentes passarem por problemas que podem até acarretar em uma depressão.
Enquanto filhos muitas vezes passam por esse “turbilhão de emoções”, os pais nem sempre estão bem preparados para lidar com os adolescentes. Alguns preferem mergulhar nos “próprios problemas”. Outros buscam soluções pragmáticas naquela pegada “causa-consequência” (mais ou menos do tipo “é assim porque não tem Deus no coração”).
Muitos desses pais estão impressionados com o caso do garoto Otávio. De acordo com uma mensagem que viralizou na internet, ele cometeu suicídio aos 14 anos no dia 22 de maio de 2016 na cidade de Santos. Uma carta, que seria escrita pela mãe dele, aponta que o grande culpado pela morte foram os jogos eletrônicos.
Na mensagem, a mãe conta a história da morte e faz um relato de “toda a perdição” dele com a TV, o celular, o tablet e o videogame. De acordo com ela, Otávio gastava 4 horas do dia entre os aparelhos eletrônicos. Ela relata que o menino deixou de praticar atividades físicas por causa do celular, passou a ter pesadelos e estava cada vez mais estressado.
Otávio, garoto de 14 anos, se suicidou por causa de jogos eletrônicos?
A tal mensagem começou a circular com muita força, principalmente entre perfis do Facebook de pessoas religiosas. Mas será mesmo que houve uma morte de uma criança de 14 anos porque ela ficou “exposta” a eletrônicos por quatro horas por dia? A resposta é não. Como o texto é grande e “repleto de teses” vamos, por parte, aos fatos.
Antes de entrar na análise do texto em si, precisamos nos atentar a alguns “itens mais gerais”. Primeiro, não deu para comprovar se a história da morte em 22 de maio de 2016 é real ou falsa. Porém, a falta de identificação da mãe (porque ela cria uma carta dessas, identifica o filho e sequer assina?), a falta de sobrenome do Otávio e o fato de não ter um relato da morte do garoto em maio de 2016 nos deixa desconfiados da veracidade. Mesmo assim, vamos dar o “benefício da dúvida”.
Vale apontar que, independentemente da história ser real ou falsa, o alerta está com “tantos furos” que mais atrapalha do que auxilia. Mesmo que a morte tenha ocorrido, é improvável (da forma que o texto foi escrito) que dê para colocá-la na “conta” dos jogos eletrônicos. Agora sim, vamos ver o texto por partes:
Em 22 de maio de 2016, Otávio jantou, tomou banho me deu boa noite e foi dormir. Quando foi meia noite e vinte acordei com um estrondo. Otávio, meu filhinho lindo, com 14 anos, se jogou do décimo terceiro andar, interrompendo sua vida, destruindo para sempre a nossa família. Otávio era um menino normal, tímido, mas doce e inteligente. Tinha boas notas, tinha amigos, era amado pelas irmãs, por mim e por meu marido. Há dois anos passo todos os dias e noites tentando entender o que aconteceu. Converso com médicos, terapeutas, educadores, pastores […]
Descobri algumas coisas que quero compartilhar com todas as mães de crianças e adolescente. Primeiro que não sou a única. Nunca soube disso: Santos, a minha cidade é um dos maiores índices de suicídio do Brasil. A ponta da praia, bairro de classe média alta, onde moro, concentra grande parte desses números. O que está acontecendo com nossos filhos? Por que não sabemos de nada disso?
De fato, o início do texto é dramático. Porém, a descrição (como citamos antes) é tão vaga que é difícil comprovar se o caso foi real ou inventado (mesmo sem nenhum registro do fato na época). O mesmo não se pode dizer da informação relativa à cidade de Santos. Ao contrário do que o texto diz, a cidade não tem um dos “maiores índices de suicídio do Brasil”.
Buscamos algumas fontes para balizar a tese. Esta matéria, por exemplo, do jornal Tribuna em 2016 aponta que a região de Santos é uma das que menos teve ocorrências de suicídio entre 2013 e 2014. Na faixa etária entre 10 e 14 anos, ocorreu uma morte.
Essa matéria de 2017 do G1 aponta que o número de mortes na cidade diminuiu com o passar do tempo. Em 2016 (ano da suposta morte de Otávio), 34 pessoas tiraram a vida na cidade. Em uma cidade com mais de 400 mil habitantes, é um número relativamente pequeno.
Já que não pude salvar meu filho, quero tentar salvar outros filhos….não desejo para nenhuma mãe o que eu vivo. De tudo que já pesquisei o que ficou mais forte foi a má influência que os eletrônicos são na vida de nossos filhos. Tenho consciência que meu filho não se matou por conta dos eletrônicos, mas cada vez mais tenho a certeza que influenciou muito. Vamos aos fatos:
1) Meu filho estudava, fazia inglês, natação, tinha boas notas….achava que tudo bem ele ficar nos eletrônicos em seu tempo livre. Mas isso significava uma hora na frente da TV, umas duas horas entre vídeo game e Ipad e em média mais uma hora (ou mais) com o celular. Médicos e psicólogos dizem que até os 14 anos as crianças devem ser expostas a uma tela por no máximo uma hora. Como se tornou tão normal que ele ficasse 4 vezes ou mais na frente de telas? Mães, não deixem. Sejam, chatas, briguem, mas ponham limites no uso.
Está aí! A pessoa da mensagem diz que “ele não se matou por conta dos eletrônicos”, mas teve influência. A justificativa são as “quatro horas por dia”, que seria “quatro vezes mais do que o recomendado”. Se for por causa disso, temos mais um dado errado.
A informação que fala de exposição em até uma hora por dia é relativa (opinião controversa, por sinal) a crianças de 2 a 5 anos. Quando falamos de adolescentes, não há um “limite em horas” (pelo menos não encontramos). O que há é a recomendação de que o período não seja maior do que o tempo de sono ou de outras atividades. Ou seja: quatro horas não “estoura” esse tempo.
Se fosse só isso, tudo bem (na verdade, não tá tudo bem, mas você entendeu). O pior de tudo é que a pessoa da mensagem tenta achar uma razão para o suicídio. Trata-se de uma questão muito mais complexa. Toda e qualquer tentativa de culpar “jogos”, “baleia azul”, “aplicativo malcriados” ou qualquer outra razão única só serve para maquiar o problema. Talvez, ser mais “companheira” ou ouvir as crianças fosse uma atitude melhor do que “ser chata” e brigar com elas.
2) Recentemente a OMS classificou a obsessão pelos eletrônicos como uma doença mental. Todos estes games giram em torno do stress. Sejam violentos ou não, o stress, a ânsia, a angústia está em todos os jogos. […] Não á toa, os principais desenvolvedores de games da Califórnia não deixam seus filhos jogarem por muito tempo os jogos que eles próprios desenvolvem, justamente por saber o quão viciante e nocivos são. […]
Sobre a OMS classificar o vídeo em games como doença é real. Aliás, tudo que é excessivo é nocivo (games, álcool, compulsão alimentar etc). Mesmo assim, reiteramos que a descrição de “quatro horas de tela por dia” e “duas horas de videogame” não se encaixa na classificação de doença.
A outra parte. De onde ela tirou essa informação de desenvolvedores da Califórnia? Juro que tentamos buscar pela informação, mas não encontramos qualquer informação. Vale lembrar que desenvolvedores de games são, em sua maioria, jovens o suficiente para não terem filhos adolescentes.
A verdade é que para as mães, os eletrônicos são uma mão na roda, nos ajudam. Uma forma dos filhos ficarem silenciosos, entretidos, sem fazer bagunça, em segurança sem que a gente tenha que fazer nada. Essa é a minha maior culpa. Nunca conseguirei me perdoar por não ter enxergado tudo isso. Por isso faço esse alerta.”
Pulamos uma parte do texto (que só repete a mesma ladainha) e fomos para o final. Mais uma vez, a informação não bate. A pessoa reclama que a criança ficava quatro horas por dia em aparelhos eletrônicos. Levando em conta de que o dia tem 24 horas, 8 dessas são de sono, sobram 12 horas. Quem será que estava ausente? A mãe ou o filho?
Vamos recapitular: 1) Não há comprovação de que o relato seja real (as informações são muito vagas). 2) O texto está cheio de dados errados sobre jogos eletrônicos e suicídios. 3) É um erro colocar a culpa de um suicídio em “um fator”. Trata-se de uma questão muito mais complexa do que isso. 4) Mesmo que o caso tenha sido real, a descrição do tempo gasto pelo menino em aparelhos eletrônicos não configura vício.
Com isso, chegamos à seguinte conclusão: obviamente, os pais têm que estar alertas com o que os filhos fazem e como “gastam o tempo livre” e que também é preciso estar alerta com os excessos (inclusive de games). Porém, o texto que circula online mais força a barra, apavora pais e incentiva o autoritarismo (o que também afasta os filhos) do que dá informações relevantes.
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